O Texto
Não se conhece muito bem a intenção de
Voltaire ao escrever "O Touro Branco". Há hipóteses: plausíveis,
lógicas, mas hipóteses. Uma delas sugere que tenha se inspirado em lendas
orientais a respeito da metamorfose animal.
A mais provável, já que Voltaire sempre se
interessou por religiões e mitos, é de que ele teria coletado, dentre os mitos
religiosos orientais, aqueles em que os homens entrassem em contato com os
animais, mesclando-os com outros. Reuniu, assim, numa comédia animal, a
serpente do paraíso, o asno de Balaão, a baleia de Jonas com as divindades do
Egito, igualmente relacionadas a animais, especialmente o touro-rei.
Mas é o mesmo e inconfundível Voltaire, com
seu conhecimento da alma humana, a filosofia profunda e a ironia impecável. Não
é tão irreverente como em outras obras, mas parece não ter resistido a sê-lo em
algumas oportunidades:
A serpente do paraíso, contestando a sua
condenação, retruca:
Nada disso: dei-lhe o melhor conselho do
mundo. Ela honrava-me com a sua confiança. Eu era de parecer que ela e seu
marido deviam provar do fruto da árvore da ciência. Acreditava agradar assim ao
senhor das coisas. Uma árvore tão necessária ao gênero humano não me parecia
plantada para ficar inútil. Desejaria o Senhor ser servido por ignorantes e
idiotas? Não é feito o espírito para esclarecer-se e aperfeiçoar-se? Não se
deve conhecer o bem e o mal para praticar o primeiro e evitar o segundo? Por
certo só me deviam agradecimentos.
A observação sobre os usuais equívocos da
corte lembram, ligeiramente, nossa Capital Federal:
Todos os ministros de Estado concluíram
que o touro branco era um feiticeiro. Dava-se exatamente o contrário: ele
estava enfeitiçado; mas na corte sempre se enganam nesses delicados assuntos.
Sobre as fábulas, essas historietas que nos
são tão queridas de infância, Voltaire, pela voz de Amaside, decreta:
Essas histórias me aborrecem - respondeu a
bela Amaside, que tinha inteligência e bom gosto. - Só servem para ser comentadas
entre os irlandeses, por esse louco do Abbadie, ou entre os velches por esse
frasista do Houteville As histórias que podiam contar à tataravó da tataravó da
minha avó já não servem para mim, que fui educada pelo sábio Mambrés e que li o
Entendimento Humano do filósofo egípcio chamado Locke e a Matrona de Éfeso.
Quero uma história que seja fundada na verossimilhança e que não se assemelhe
sempre a um sonho. Desejo que não tenha nada de trivial nem de extravagante.
Desejaria sobretudo que, sob o véu da fábula, deixasse transparecer aos olhos
exercitados alguma fina verdade que escapa ao vulgo. Estou cansada do sol e da
lua de que uma velha dispõe a seu bel-prazer, das montanhas que dançam, dos
rios que remontam à sua fonte, e dos mortos que ressuscitam; mas, quando essas
tolices são escritas em estilo empolado e ininteligível, ai sim, que me
desgostam horrivelmente.
Ironia sobre divindades, não faltou, é
sugestiva:
Mais além, surgiam, na mesma pompa, a
ovelha de Tebas, o cão de Bubasta, o gato de Febe, o crocodilo de Arsinoe, o
bode de Mendés, e todos os deuses inferiores do Egito, que vinham render
homenagem ao grande boi, ao grande deus Apis, tão poderoso quanto Isis, Osiris
e Hórus juntos.
No meio de todos esses semideuses,
quarenta sacerdotes carregavam um enorme cesto cheio de cebolas sagradas, que
não eram deuses, mas que muito se lhes assemelhavam.
E o que parece genial: a princesa Amaside
fora proibida pelo pai de pronunciar o nome de seu amado, sob pena de
decapitação. Ela tentou dizer: Na... e foi advertida pelo sábio Mambrés do
risco que começava a correr. Com mais ousadia pronunciou Nabu..., logo depois
Nabuco... e, finalmente, Nabucodonosor. Nesse momento alcançou a liberdade,
enfrentou o pai e casou-se com o seu amado: "o grande rei que não era mais
boi!". É para se meditar.
O Autor
FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris,
em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de
jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um
procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular
por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em
1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado
na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e
com o esboço do O Edipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de
Voltaire. Sua tragédia O Edipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos
anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).
Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi
novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a
França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da
literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus (1730),
Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin
(1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises,
que provocaram grande escândalo e
obrigaram a refugiar-se em Lorena, no
castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou
ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton
(1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur
l'Homme, etc. Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já
então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já
estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras
excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a
fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os
ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.
Sem poder fixar-se em parte alguma,
esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758,
adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir
em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim
viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie
sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar
numerosas peças teatrais.
Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu
no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.
A Montagem
Voltaire nos oferece
material para a organização do nosso próprio material. O texto homônimo de
Voltaire é o condutor do nosso “texto em pesquisa”. Adotamos os rolamentos,
como desdobramento da vertigem, do circular, para investir o corpo que vai à
cena; e mais do que isso: construir em cena o corpo que pertence a ela. A
encenação vai se construindo no que cada corpo tem para dizer da tensão, da
vertigem, da pressão..., mas claro, com um direcionamento prévio. O que se
pretende é que os corpos extravasem as propostas e nas falências dessas
construam o que realmente nos importa aqui - materialidades para a significação
estética! Ou seja, 4 corpos, um espaço, um texto, sonoridades, luzes (fogo e
eletricidade), objetos e tecidos, na dificuldade que oferecem uns aos
outros reorganizam-se a si mesmos, e da movimentação que fazem em torno
de si, considerando o interpelamento pelo outro, geram o que temos chamado aqui
e ali de o “ENTRE” da criação estética.
Nós utilizamos nosso próprio diário de bordo
como referência corporal, o que se traduz em desafios para o elenco, que
precisa desenvolver sua busca corporal ao mesmo tempo em que se dedica à
procura estética, e direção, que deve conduzir os atores nessa campanha.