ORIGINAIS FAVORES DA LUA -O PRÓLOGO


ORIGINAIS
O material aqui postado corresponde aos textos da obra de Charles Baudelaire e às imagens de Paul Gauguin, nos quais livremente nos inspiramos para a dramaturgia e encenação da peça "Favores da Lua- o prólogo".


Quem é Paul Gauguin?  

Pintor francês pós-impressionista, nasceu a 7 de Junho de 1848, em Paris, e morreu em 1903, nas Ilhas Marquesas. Depois de ter sido marinheiro e empregado bancário, decidiu enveredar pela pintura, ao conhecer Camille Pissarro e o trabalho dos impressionistas. Em constante revolta contra os artifícios e os convencionalismos da época, encetou um retorno às origens em Taiti. A Bretanha constitui contudo o primeiro passo no seu percurso artístico. Libertando-se do Impressionismo, em O Cristo Amarelo (1889) utiliza cores lisas delimitadas por contornos, processo que se assemelha à arte do vitral medieval, e que vai aperfeiçoar naquilo a que se chamou o "cloisonnisme". Em Manao Tupapau (1892), já no Taiti, as prioridades do espaço pictural prevalecem sobre a realidade, as proporções das figuras são deformadas, a perspectiva alterada, as cores são intensas e profundas, mas nunca agressivas. Em A Lua e a Terra (1893) expressa os seus sentimentos sobre a cultura maori. Com O Cavalo Branco (1898) o seu estilo conserva-se essencialmente o mesmo, mas torna-se mais poderoso. A sua obra-prima é a alegoria Donde Vimos? Que Somos? Para Onde Vamos? (1897) uma espécie de testamento mágico-religioso executado antes de uma tentativa de suicídio. A sua arte influenciou directamente os nabis, o Fauvismo, o Simbolismo e mesmo o Expressionismo de Edvard Munch.


Fonte:
Paul Gauguin. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-01-10].


Quem é Charles Baudelaire?

            Poeta e crítico francês (9/4/1821-31/8/1867). A obra do parisiense Charles Pierre Baudelaire, pertencente ao simbolismo, questiona o excesso de moral e sentimentalismo e se opõe à vida burguesa e às convenções da época. Charles Baudelaire é considerado freqüentemente um dos maiores poetas do Século XIX, influenciando a poesia internacional de tendência simbolista. De seu estilo de vida originaram-se na França os chamados poetas “malditos”. Um revolucionário em seu próprio tempo. Hoje ele ainda é conhecido, não somente como poeta, mas também como crítico literário. Raramente houve alguém tão radical e ao mesmo tempo tão brilhante. Mal compreendida por seus contemporâneos, apesar de elogiada por Victor Hugo, Teóphile Gautier, Gustave Flaubert e Théodore de Banville, a poesia de Baudelaire está marcada pela contradição. Revela, de um lado, o herdeiro do romantismo negro de Edgar Allan Poe e Gérard de Nerval, e de outro o poeta crítico que se opôs aos excessos sentimentais e retóricos do romantismo francês.

Textos retirados do livro " Spleen de Paris: Pequenos Poemas em Prosa" de Charles Baudelaire
III
CONFISSÃO DE ARTISTA
Como são penetrantes as tardes de outono! Penetrantes até à dor! Há certas sensações deliciosas em que o vazio não exclui a intensidade. E não há ponta mais acerada que a do infinito.Grande delícia, mergulhar os olhos na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! Pequena vela a tremular no horizonte, cuja fraqueza e isolamento imitam minha irremediável existência. Melodia monótona das ondas. Todas essas coisas pensam por mim, ou eu penso por todas: na grandeza do sonho, o eu logo se perde! Pensam, repito, mas musical e pitorescamente, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.Todavia, esses pensamentos, que partem de mim ou se precipitam das coisas, logo se tornam demasiado intensos. A energia na volúpia cria uma inquietude e um sofrimento positivos. Meus nervos, tensos demais, dão apenas vibrações agudas e dolorosas. E agora a profundeza do céu me consterna; exaspera-me a sua limpidez. Revoltam-me a insensibilidade do mar, a imutabilidade do espetáculo... Ah! Será preciso sofrer eternamente, ou evitar eternamente o belo? Natureza, impiedosa feiticeira, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Não tentes os meus desejos e o meu orgulho! A contemplação do belo é um combate em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.

VI
CADA QUAL COM SUA QUIMERA
Sob um grande céu de cinza, numa vasta planície poeirenta, sem estradas, sem mato, sem espinho, sem urtiga, encontrei vários homens, curvados, a marchar.Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como a mochila de um infante romano.Mas a monstruosa besta não era um peso inerte. Ao contrário, envolvia e oprimia o homem com músculos elásticos e potentes. Cravava as garras enormes no peito da montaria. E a cabeça fabulosa dominava a frente do homem, como os elmos medonhos com que os guerreiros antigos pretendiam aumentar o terror do inimigo.Interpelei um daqueles homens e perguntei-lhe aonde iam. Respondeu-me que não sabia, nem ele, nem os outros. Evidentemente, porém, acrescentou, iam a alguma parte, pois eram levados por uma incrível necessidade de marchar.Coisa curiosa: nenhum dos viajantes parecia irritado com a fera que levava suspensa ao pescoço e colada às costas; dir-se-ia que a considerava como fazendo parte de si mesmo. Nenhum daqueles rostos fatigados e sérios demonstrava o menor desespero. Sob a cúpula melancólica do céu, pés mergulhados na areia de um chão tão desolado quanto o céu, caminhavam com a fisionomia resignada dos que estão condenados a esperar sempre.O cortejo passou ao meu lado e afundou-se na atmosfera do horizonte, no lugar em que a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.Durante alguns instantes, obstinei-me em querer compreender esse mistério. Logo, porém, a irresistível indiferença abateu-se sobre mim, e eu me senti mais oprimido do que eles com as pesadas Quimeras.
VIII
O CÃO E O FRASCO
- Meu lindo cachorro, meu bom cão, querido totó! Aproxime-se, venha respirar um excelente perfume comprado na casa do melhor perfumista da cidade.
E o cão, sacudindo a cauda, o que me parece ser, nesses pobres seres, um sinal correspondente à gargalhada e ao sorriso, aproxima-se e pousa curiosamente o focinho no frasco aberto. Mas depois, recuando bruscamente, assustado, late contra mim, à guisa de censura.
- Ah! Miserável cão, se eu lhe tivesse oferecido um punhado de excremento, você o farejaria com delícia e talvez o devorasse. Até você, indigno companheiro de minha vida triste, se parece com o público, ao qual nunca se devem apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas sujeiras cuidadosamente escolhidas.

IX
O MAU VIDRACEIRO
Há naturezas puramente contemplativas e de todo impróprias para a ação. No entanto, por um impulso misterioso e desconhecido, agem às vezes com uma rapidez de que elas mesmas se julgariam incapazes.Uns, com receio de encontrar na entrada de casa mais outra infeliz, perambulam covardemente diante da porta, sem se decidirem a entrar; outros guardam uma carta durante quinze dias sem abri-la; outros só ao cabo de seis meses se resignam a fechar um negócio necessário há mais de um ano. Não obstante, às vezes, sentem-se bruscamente precipitados na ação por uma força irresistível, como a flecha de um arco. O médico e o moralista, que tudo pretendem saber, não podem explicar como essas almas ociosas e cheias de volúpia adquirem de repente tão louca energia, nem como, embora incapazes de realizar as coisas mais simples e mais necessárias, revelam de uma hora para outra uma coragem inaudita para praticar os atos mais absurdos e muitas vezes os mais perigosos. Um dos meus amigos, o mais inofensivo sonhador que jamais existiu, incendiou certa vez uma floresta, para ver, dizia ele, se o fogo pegava com tanta facilidade como em geral se afirmava. Dez vezes em seguida, a experiência falhou; mas, na décima primeira, teve um êxito completo.Haverá quem acenda um charuto ao lado de uma barrica de pólvora, para ver, para saber, para tentar o destino, para ver-se forçado a dar prova de energia, a arriscar-se, para conhecer os prazeres da ansiedade, ou à tôa, por capricho, por distração.É uma espécie de energia que transborda do enfado e do sonho. Aqueles em que ela se manifesta tão inopinadamente são, em geral, como eu disse, os mais indolentes e os mais sonhadores dos seres.Haverá igualmente quem, embora leve a própria timidez ao ponto de baixar os olhos quando encara os homens, e ao ponto de precisar reunir toda a sua pobre vontade para entrar num café ou passar diante da bilheteria de um teatro, onde os fiscais lhe parecem revestidos da majestade de Minos, de Eaco ou de Radamanto, saltará bruscamente ao pescoço de um velho que passar ao seu lado e o abraçará com entusiasmo diante da multidão espantada.
Por quê? Porque... porque essa fisionomia lhe era irresistivelmente simpática? Talvez; é mais legítimo, porém, supor que ele próprio não sabe por quê.Eu tenho sido, por mais de uma vez, vítima dessas crises e desses impulsos, que nos autorizam a acreditar que haja demônios maliciosos dentro de nós, para nos fazerem realizar, à nossa revelia, as suas mais absurdas vontades.Uma manhã, eu me levantara mal humorado, triste, cansado de ócio. E, sentindo-me levado a fazer alguma coisa grandiosa, a praticar um ato notável, abri a janela, e ai de mim!(Peço-vos observar que o espírito de mistificação que, em certas pessoas, não é o resultado de um trabalho ou de uma combinação, mas de uma inspiração fortuita, participa muito, embora só pelo ardor do desejo, desse humor, histérico segundo os médicos, que nos leva a praticar sem resistência uma porção de atos perigosos ou inconvenientes.).A primeira pessoa que descobri na rua foi um vidraceiro cujo grito agudo, discordante, subiu até a mim através a pesada e suja atmosfera parisiense. Ser-me-ia, aliás, impossível dizer porque fui tomado para com aquele pobre homem de um ódio tão súbito quanto despótico.- Olá! Olá! - gritei-lhe dizendo que subisse. E ao mesmo tempo eu pensava, não sem um certo contentamento, que, sendo o quarto no sexto andar e a escada muito estreita, o homem devia encontrar dificuldade na subida e ir batendo em vários lugares com os ângulos de sua frágil mercadoria.Afinal, ele apareceu e eu pus-me a examinar curiosamente os vidros, dizendo-lhe: - Como? Não tem vidros de cor? Cor de rosa, vermelhos, azuis, mágicos, do paraíso? Sem vergonha! Tem a coragem de andar passeando nos bairros pobres sem ter vidros que embelezem a vida! E o empurrei com força pela escada abaixo, por onde ele foi rolando aos gritos.Depois, aproximei-me da sacada, segurando uma pequena jarra de flores, e, quando o homem tornou a aparecer na saída da porta, deixei-lhe cair perpendicularmente o meu engenho de guerra em cima da bagagem. O choque derrubou-o e ele acabou de quebrar com as costas toda aquela fortuna ambulatória, que produziu o ruído estridente de um palácio de cristal atingido pelo raio.Então, ébrio de loucura, gritei-lhe furiosamente: - A vida embelezada! A vida embelezada!Essas nervosas brincadeiras não deixam de ter seus riscos e podem custar caro. Mas, que importa a eternidade da maldição, para quem achou num segundo o gozo infinito?

X
À UMA HORA DA MADRUGADA
Enfim, só! Já não se ouve o rodar dos carros retardados e sonolentos. Durante algumas horas teremos o silêncio, se não o repouso. A tirania da face humana desapareceu, enfim, e eu só terei de sofrer por mim mesmo.Enfim! Posso agora revigorar-me num banho de trevas! Antes, porém, mais uma volta na fechadura. Parece-me que essa volta de chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que ora me separam do mundo.Vida horrível! Vida medonha! Recapitulemos o dia: Vi vários homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre, pois decerto tomava a Rússia por uma ilha... Discuti generosamente com o diretor de uma revista, que a cada objeção respondia: “Aqui é o partido dos homens honestos”, o que significa que todos os outros jornais são redigidos por tratantes... Cumprimentei uma vintena de pessoas, quinze das quais eu não conheço... Distribuí apertos de mão na mesma proporção, sem ter tido o cuidado de comprar luvas... Subi, para matar o tempo, durante uma tempestade, à casa de uma dançarina que me pediu que lhe desenhasse uma túnica de Vênus... Fiz a corte a um diretor, que me disse ao despachar-me: “Você talvez fizesse bem em dirigir-se a Z..., que é o mais grosseiro, o mais tolo e o mais famoso de todos os meus autores. Com ele, talvez você pudesse arranjar alguma coisa. Procure-o e depois veremos...” Gabei-me, não sei por que, de vários atos desonestos que não cometi e neguei outros que pratiquei com alegria: delito de fanfarronada, crime de respeito humano. Recusei a um amigo um favor fácil e dei uma recomendação por escrito a um perfeito cretino. Ufa! Que terminei.Desgostoso de todos e de mim mesmo, eu desejaria compensar-me e envaidecer-me um pouco no silêncio da solidão da noite. Almas dos que amei, almas dos que cantei, fortificai-me, apoiai-me, afastai de mim a mentira e os vapores de corrupção do mundo! E vós, Senhor, meu Deus, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem não ser eu o último dos homens, nem inferior aos que desprezo.

XI
A MULHER SELVAGEM E A AMANTE
“Na verdade, querida, você me cansa demais e sem piedade. Dir-se-ia, ouvindo-a suspirar, que você sofre mais do que as camponesas sexagenárias e as velhas mendigas que catam migalhas de pão à porta dos cabarés.
“Se os seus suspiros ao menos exprimissem remorso, seriam para você uma honra; mas traduzem apenas a saciedade do bem estar e a prostração do repouso. Além disso, você não cessa de derramar-se em palavras inúteis: “- Ame-me bastante! Tenho necessidade disso! Console-me, acaricie-me! “Ouça, quero tentar sua cura. Talvez descubramos o meio para isso, entre duas notas musicais, no meio de uma festa, sem irmos muito longe.
“Veja essa jaula de ferro. Agita-se lá no fundo, urrando como um danado, sacudindo as grades como um orangotango exasperado pelo exílio, imitando com perfeição ora os saltos circulares do tigre, ora os bamboleios estúpidos do urso branco, aquele monstro cuja forma lembra vagamente a sua.
“É esse monstro um dos animais que se costumam chamar ‘meu anjo!’, isto é, uma mulher. O outro monstro, o que grita desesperadamente, com um pau na mão, é o marido. Acorrentou a mulher legítima como uma fera e mostra-a agora nos subúrbios, em dias de feira, com licença dos magistrados, naturalmente.
“Preste bem atenção! Veja com que voracidade (talvez sincera!) ela estraçalha coelhos vivos e aves estertorantes jogadas pelo tratador. “- Vamos - diz ele - não coma tudo num só dia. “E, com essa frase cautelosa, arranca-lhe cruelmente a presa, cujas tripas desfiadas permanecem um instante seguras nos dentes da fera, quero dizer, da mulher.
“Vamos! Uma boa paulada para acalmá-la, que ela lança olhares terríveis de cobiça sobre o alimento arrebatado. Meu Deus! Aquele pau não é um pau de comédia! Pois não ouvistes ressoar a carne, a despeito do pêlo inútil? Também os olhos saem agora da cabeça, e ela urra com mais naturalidade. Faísca de raiva, como o ferro que se bate.
“Tais são, meu Deus, os costumes conjugais dos dois descendentes de Adão e Eva, obra das vossas mãos! Essa mulher é incontestavelmente infeliz, se bem que, afinal de contas, talvez não desconheça os prazeres crepitantes da glória. Há desgraças mais irremediáveis e sem compensação. Mas, no mundo em que foi lançada, jamais pôde ela supor que a mulher merecesse outro destino.
“Agora, nós dois, amante querida! Vendo os infernos que povoam o mundo, que pretende você que eu pense do seu belo inferno? você, que só repousa sobre almofadas macias como sua pele? que só come carne cozida, que um criado hábil tem o cuidado de picar em pedaços?
“Que podem significar para mim, oh robusta faceira, todos esse pequenos suspiros que lhe enchem o peito perfumado? E toda essa afetação aprendida nos livros, e essa infatigável melancolia, feita para inspirar ao espectador um sentimento bem contrário ao da piedade? De fato, tenho às vezes o desejo de lhe ensinar o que é a verdadeira desgraça.
“Vendo-a assim, meu lindo amor, com os pés na lama e os olhos vaporosamente voltados para o céu, como para pedir-lhe um rei, dir-se-ia que você parece uma jovem rã que invocasse o ideal. E, se desprezar o soba (que é o que sou agora, como sabe), cuidado com o grou que a esmigalhará, engolirá e matará quando bem entender!
“Por mais poeta que eu seja, não sou tão idiota quanto você o julga. E, se me cansar demais com suas preciosas choradeiras, passarei a tratá-la como mulher selvagem, ou a atirarei pela janela, como uma garrafa vazia.”

XV
O BOLO
Eu viajava. A paisagem no meio da qual me achava era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa se passou nesse momento em minha alma. Os meus pensamentos vagavam com uma ligeireza igual à da atmosfera. As paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me, então, distantes como as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob os meus pés. Minha alma parecia-me vasta e pura como a cúpula do céu que me cercava. Das coisas terrestres só me chegava ao coração a lembrança diminuída e apagada, como o ruído dos guizos de gado quase imperceptível que pastava ao longe, muito longe, na vertente de outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro em sua imensa profundeza, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do manto de um gigante aéreo que voasse pelo céu. Lembro-me de que essa sensação solene e rara, provocada por um grande movimento perfeitamente silencioso, enchia-me de um misto de alegria e de medo. Sentia-me em suma, graças à entusiasmante beleza que me cercava, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo. Creio até que, na minha perfeita beatitude e no meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu chegara ao ponto de não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom. Foi quando a matéria incurável, renovando suas exigências, fez-me pensar em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por tão longa subida. Tirei do bolso um grande pedaço de pão, um copo de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos da época vendiam aos excursionistas para que o misturassem com a água da neve.Eu estava tranqüilamente cortando o meu pão, quando um leve ruído me fez erguer os olhos. Diante de mim estava um pequeno ser andrajoso, desgrenhado, cujos olhos fundos, ferozes e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. Ouvi-o suspirar, então, com uma voz baixa e rouca, a palavra: Bolo! Não pude deixar de rir ao escutar o nome com que ele pretendia honrar o meu pão quase branco, e cortei para ele uma fatia que lhe ofereci. Ele se aproximou devagarinho, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça. Depois, apanhando a fatia com a mão, recuou de repente, como se receasse que a minha oferta não fosse sincera ou que eu já estivesse arrependido.No mesmo instante, porém, foi derrubado por outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se teria podido tomá-lo por um irmão gêmeo. Rolaram ambos no chão, disputando a valiosa presa, sem que nenhum quisesse sacrificar a metade pelo irmão. O primeiro, exasperado, puxou o segundo pelos cabelos; este pegou-lhe a orelha com os dentes e cuspiu-lhe uma migalha sangrenta com uma soberba praga regional. O legítimo proprietário do bolo tentou cravar as unhinhas nos olhos do usurpador; este, por sua vez, empregou toda a força para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reanimado pelo desespero, o vencido endireitou-se e fez rolar o vencedor por terra, com uma cabeçada no estômago. Para quê descrever uma luta hedionda, que na verdade durou mais tempo do que pareciam permiti-lo aquelas forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso a cada instante. Mas, ai de mim! Mudava também de volume. Quando, por fim, exaustos, anelantes, ensangüentados, pararam ambos pela impossibilidade de continuar, já não havia, a dizer verdade, nenhum motivo de batalha: o pedaço de pão desaparecera, todo fragmentado em migalhas semelhantes aos grãos de areia com que se misturara.Esse espetáculo anuviou-me a paisagem. A alegria calma em que minha alma se expandia, antes de ver aqueles pequeninos homens, desapareceu por completo. E assim fiquei por muito tempo, triste, repetindo-me sem cessar: - Há um soberbo lugar em que o pão se chama bolo, iguaria tão rara que é o suficiente para causar uma guerra perfeitamente fratricida!

XXIV
PROJETOS
Dizia ele, consigo, passeando num grande parque solitário: - Como ficaria bonita, com um traje de corte, complicado e faustoso, descendo, através a atmosfera de uma bela noite, os degraus de mármore de um palácio, diante dos gramados e das fontes! Tem a naturalidade de uma princesa!Passando mais tarde numa rua, parou defronte a uma loja de gravuras e, descobrindo num cartão uma estampa representando uma paisagem tropical, tornou a dizer consigo: - Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir minha amada. Não estaríamos em nossa casa. Além disso, as paredes cravejadas de ouro não deixariam lugar para pendurar o retrato dela. Nas solenes galerias, não há um canto para a intimidade. Lá, decididamente, é que eu deveria ficar para cultivar o sonho de minha vida.E, sempre analisando com os olhos os detalhes da gravura, continuava mentalmente: - À beira-mar, uma bonita residência de madeira, cercada de todas essas árvores bizarras e luzentes cujos nomes esqueci... Na atmosfera, um perfume inebriante, indefinível. Dentro de casa, um aroma de rosa e musgo... Mais adiante, atrás de nossa pequena propriedade, extremidades de mastros balanceados pela maré... Ao redor, para além de nosso quarto iluminado por uma luz cor-de-rosa coada pelas cortinas, todo enfeitado de frescos cipós e de flores capitosas, com luxuosos banquinhos de rococó português, feitos de madeira pesada e escura, para ela sentar-se, calma e vaporosa, fumando um tabaco ligeiramente opiado, - para além da varanda, o gorjeio dos pássaros ébrios de luz e a algaravia das negrinhas... E, à noite, para servir de acompanhamento aos meus sonhos, o canto dolente dos instrumentos de música, das flautas melancólicas! Sim, na verdade, está lá o ornamento que procuro. Que posso fazer num palácio?E mais adiante, seguindo uma grande avenida, viu um simpático albergue, em cuja janela adornada de cortinas de chitas mosqueada estavam duas cabeças risonhas. Então, disse consigo: - É preciso que minha imaginação seja uma grande vagabunda para ir buscar tão longe o que está tão perto de mim. O prazer e a felicidade se encontram no primeiro albergue que aparece, no albergue do acaso, tão fecundo em volúpias. Um bom fogo, vasos vistosos, uma refeição passável, um vinho grosseiro e uma cama bem larga com lençóis um pouco ásperos, mas frescos... Que pode haver de melhor?Ao entrar em casa, à hora em que os conselhos da Sabedoria já não são abafados pelo burburinho da vida exterior, disse consigo: - Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei um prazer igual. Porque forçar meu corpo a mudar de lugar, se minha alma viaja tão depressa? E para que realizar projetos, se o projeto é em si mesmo um prazer suficiente?

XXVI
OS OLHOS DOS POBRES
Ah! Quer saber porque hoje a detesto? Você terá, sem dúvida, menos facilidade em compreendê-lo do que eu em explicá-lo. Considero-a o mais belo exemplo de impermeabilidade feminina que se possa encontrar.Passamos juntos um longo dia, que me parecera curto. Tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns e que as nossas almas seriam uma só. Ora, esse sonho nada tem de original, a não ser o fato de que, sonhado por todos os homens, não foi realizado por nenhum.À tarde, sentindo-se um pouco fatigada, você quis sentar-se defronte a um café novo, na esquina de uma nova avenida, ainda cheia de asfalto e já mostrando gloriosamente esplendores inacabados. O café estava cintilante. O gás tinha todo o ardor de um começo, iluminando com toda a intensidade as paredes resplendentes de brancura, as cascatas deslumbrantes dos espelhos, o ouro das molduras e das cornijas, os criados de bochechas redondas puxados por cães presos à corrente, as damas sorrindo ao falcão trepado no punho, as ninfas e as deusas carregando frutas, pastéis e caça na cabeça, as Hebes e os Ganimedes ostentando com o braço estendido a pequena ânfora de néctar, ou o obelisco bicolor dos sorvetes aromáticos: toda a história e toda a mitologia postas a serviço da gulodice.
De pé diante de nós, na calçada, um homem de uns quarenta anos, rosto abatido, barba grisalha, dava a mão a um menino e no outro braço segurava um ser pequenino fraco demais para andar. Fazia às vezes de ama, para os filhos respirarem o ar da tarde. Todos em andrajos. As três fisionomias estavam extraordinariamente sérias e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, apenas diversificada pela idade.Diziam os olhos do pai: - Como é bonito! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo foi trazido para essas paredes. Os olhos do menino diziam: - Como é bonito! Mas, é uma casa onde só pode entrar gente que não é como nós. Quanto aos olhos do pequenino, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa além de uma alegria estúpida e profunda.Dizem os cancioneiros que o prazer torna a alma bondosa e enternece o coração. Tinham razão, essa tarde. Eu não só estava enternecido com essa família de olhos, mas me sentia um tanto envergonhado dos nossos copos e garrafas, maiores do que a nossa sede. Fitei então os meus nos seus, meu amor, para ler o meu pensamento. E estava mergulhado nos seus olhos, tão belos e tão singularmente doces, nos seus olhos verdes, quando você me disse: - Não suporto essa gente de olhos escancarados como porteiras! Porque você não pede ao dono do café que os afaste daqui?Como é difícil um entendimento, anjo querido! E como o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

XXX
A CORDA
Para: Edouard Manet
As ilusões - dizia-me meu amigo - são talvez tão inumeráveis quanto as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. Quando a ilusão desaparece, isto é, quando vemos o ser ou o fato tal qual existe fora de nós, experimentamos um sentimento estranho, misto de saudade do fantasma desaparecido e agradável surpresa ante a novidade, ante o fato real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre semelhante e de tal natureza que a respeito seja impossível haver engano, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor materno quanto uma luz sem calor. Não é, pois, perfeitamente legítimo atribuir ao amor materno todas as ações e palavras de uma mãe, relativas ao seu filho? No entanto, escute esta pequena história, em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural.Minha profissão de pintor leva-me a observar atentamente os rostos, as fisionomias que aparecem no meu caminho. Você sabe o prazer que experimentamos por essa faculdade que aos nossos olhos torna a vida mais viva e mais significativa do que para os outros homens. No bairro retirado em que moro e onde vastos espaços de mato ainda separam as construções, observei muitas vezes um menino cuja fisionomia ardente e esperta, mais do que todas as outras, logo me seduziu. Por mais de uma vez, ele posou para mim eu o transformava ora em pequeno boêmio, ora em anjo, ora em Amor mitológico. Fazia-o carregar o violão do vagabundo, a Coroa de Espinhos e os Pregos da Paixão, e a Tocha de Eros. Cheguei a sentir um prazer tão vivo com as graças desse garoto, que um dia pedi aos seus pais, gente muito pobre, que consentissem em confiá-lo a mim, prometendo-lhes que o vestiria bem, que lhe daria algum dinheiro e que o seu único trabalho seria limpar os meus pincéis e fazer minhas compras. O menino, depois de ter lavado o rosto, tornou-se encantador, e a vida que levava em minha casa parecia-lhe um paraíso, em comparação com a que teria sofrido no cortiço paterno. Devo dizer somente que o guri me surpreendia, às vezes, com crises singulares de tristeza precoce, tendo em breve manifestado um gosto imoderado pelo açúcar e pelos licores. Um dia, ao constatar que, a despeito de todas as minhas advertências, ele tornara a cometer um pequeno furto desse gênero, ameacei-o de mandá-lo de novo para a casa dos pais. E saí em seguida, tendo os meus afazeres me retido bastante tempo fora de casa.Quais não foram o meu horror e o meu assombro quando, regressando à casa, o primeiro objeto em que pus os olhos foi o meu guri, o esperto companheiro de minha vida, enforcado no painel daquele armário! Seus pés quase tocavam o soalho; uma cadeira, que ele decerto empurrara com o pé, estava derrubada ao lado; tinha a cabeça pendida sobre um ombro; o rosto inchado e os olhos arregalados com espantosa fixidez deram-me, a princípio, a ilusão de que ainda vivia. Descrever o que se passou não é tarefa tão fácil quanto talvez você o julgue. Ele já estava hirto e eu sentia uma certa repugnância inexplicável em fazê-lo cair bruscamente ao chão. Precisei segurá-lo com um só braço, enquanto com o outro cortei a corda. Feito isso, como o pequeno monstro se tivesse servido de uma corda muito fina que lhe entrara profundamente na carne, precisei, com uma tesourinha, procurar a corda entre os dois caroços da inchação, para desembaraçar-lhe o pescoço.Esqueci-me de dizer-lhe que, em minha aflição, gritei por socorro, mas todos os vizinhos recusaram-se a ir em meu auxílio, fiéis aos hábitos do homem civilizado que, não sei porquê, nunca se envolve em casos de enforcamento. Afinal, veio um médico que declarou que o menino estava morto havia várias horas. Quando, mais tarde, tivemos de despi-lo para o enterro, a rigidez do cadáver era tal que, desistindo de dobrar-lhe os membros, precisamos rasgar e cortar a roupa para tirá-la.O comissário, a quem, como é natural, eu tive de expor o ocorrido, olhou-me de través e me disse, sem dúvida pelo desejo inveterado e o hábito profissional de atemorizar, arbitrariamente, os inocentes como os culpados: - Isso está mal contado!Restava uma tarefa suprema que cumprir, cuja simples idéia causava-me uma angústia terrível: era preciso avisar os pais. Meus pés recusavam levar-me. Por fim, tomei coragem. Mas, com grande espanto meu, a mãe ficou impassível, nem uma lágrima brotoulhe no canto dos olhos. Atribuí essa coisa estranha ao horror que ela deveria ter sentido e lembrei-me da conhecida sentença: “As dores mais terríveis são as dores silenciosas”. Quanto ao pai, limitou-se a dizer com um ar meio grosseiro e sonhador: - Afinal, talvez seja melhor assim. De qualquer forma ele acabaria mal!O corpo estava estendido no meu sofá, e eu, ajudado por uma criada, tratava dos últimos preparativos, quando a mãe entrou no meu estúdio. Disse-me que desejava ver o cadáver do filho. Eu não podia, naturalmente, impedir que ela se embriagasse em sua desgraça, recusando-lhe esse supremo e sombrio consolo. Pediu-me que lhe mostrasse o lugar onde o filho se enforcara. - Oh, não, senhora! - respondi-lhe, - isso lhe faria mal. E, como os meus olhos se voltassem involuntariamente para o fúnebre armário, notei, com um desgosto mesclado de horror e cólera, que o prego ficara fincado na parede, com um comprido pedaço de corda dependurado. Precipitei-me para arrancar esses últimos vestígios da desgraça e, quando quis atirá-los pela janela aberta, a pobre mulher pegou-me pelo braço e me disse com uma voz irresistível: - Oh, senhor! Deixe-me isso, peço-lhe, suplico-lhe! Tive a impressão de que o desespero tornara-a tão alucinada que se tomava agora de ternura pelo que servira de instrumento à morte do filho, querendo guardá-lo como uma horrível e querida relíquia. E assim se apoderou do prego e da corda.Enfim! Enfim, estava tudo acabado. Só me restava retornar ao trabalho, mais vivamente ainda do que de costume, para expulsar aos poucos o pequeno cadáver que vagava nas circunvoluções do meu cérebro, perseguindo-me com seus grandes olhos fixos. No dia seguinte, porém, recebi um maço de cartas: umas, dos locatários de minha casa, outras das casas vizinhas; uma, do primeiro andar, outra do segundo; outra do terceiro; e assim por diante, umas em estilo burlesco, como que procurando disfarçar sob uma pilhéria aparente a sinceridade do pedido; outras, pesadamente cínicas e sem ortografia, mas todas tendendo ao mesmo fim: obter de mim um pedaço da corda funesta e beatífica. Entre os signatários, havia, devo dizer-lhe, mais mulheres do que homens; nem todos, porém, acredite, pertenciam à classe baixa e vulgar. Eu guardei essas cartas.E então, subitamente, uma luz se fez no meu cérebro, e compreendi porque aquela mãe empenhara-se tanto em arrancar-me a corda e com que comércio ela tencionava consolar-se.

XXXVII
OS FAVORES DA LUA
A Lua, que é a personificação do capricho, olhou pela janela, enquanto dormias no teu berço, e disse consigo: - Gosto desta criança.Desceu preguiçosamente a escada de nuvens e passou de mansinho pelas vidraças. Depois, estendeu-se em cima de ti com a ternura macia de uma mãe e coloriu o teu rosto. Tuas pupilas ficaram verdes e tuas faces extraordinariamente pálidas. Foi ao contemplar essa visitante que os teus olhos aumentaram de um modo tão estranho. E foi tal a ternura com que apertou tua garganta que ficaste para sempre com vontade de chorar.Na expansão de sua alegria, a Lua enchia todo o quarto como uma atmosfera fosfórica, como um luminoso veneno. E toda aquela luz viva pensava e dizia: - Sofrerás eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira. Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar verde e imenso; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos pasmados em cima dos pianos e gemendo como mulheres, com uma voz rouca e macia. Serás amada por meus amantes, cortejada por meus cortesãos. Serás a rainha dos homens de olhos verdes, cuja garganta eu também apertei nas minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que parecem incensórios de uma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os voluptuosos animais selvagens que simbolizam a loucura desses homens.É por isso, maldita e querida e mimada criança que eu agora estou deitado aos teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temível Divindade, da fatídica madrinha, da ama que envenena os lunáticos.

XL
O ESPELHO
Um homem medonho entra e mira-se no espelho.
- Porque olha para o espelho, se só pode ver-se com desgosto? - perguntei-lhe
- Senhor, - respondeu-me, - segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos: tenho, pois, o direito de mirar-me. Com prazer ou com desgosto, isto é com minha consciência.
Em nome do bom senso, é certo que eu tinha razão; mas, do ponto de vista da lei, a razão estava com ele.

XLIV
A SOPA E AS NUVENS
Minha travessa companheira servia-me o jantar e, enquanto isso, pela janela aberta da sala, eu contemplava as arquiteturas movediças que Deus formou com os vapores; maravilhosas construções do impalpável. E dizia em minha contemplação: - Todas essas fantasmagorias são quase tão belas quanto minha linda companheira, a pequena louca monstruosa de olhos verdes.De repente, recebi um violento soco nas costas e ouvi uma voz rouca e encantadora, uma voz histérica e enrouquecida pela aguardente, a voz de minha querida companheirinha, que me disse: - Vá logo tomar sua sopa, seu mercador de nuvens!